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#vivasuapele: Luci Gonçalves e o tempo que não para

Luci Gonçalves gosta de mergulhar fundo: aqui, ela compartilha tudo o que aprendeu com o próprio corpo, cabelo e pele durante a pandemia, e é a prova viva de que o tempo é o que a gente faz dele.

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Foto: Instagram @lucigoncalvesa

Cá estamos nós novamento no mês de março. Completando um ano de pandemia. Um ano de quarentenas, de incertezas, de rotinas que foram totalmente pausadas, substituídas por outras, ou por nenhuma rotina no geral. O caminho mais fácil, muitas vezes, foi se deixar levar pela falta dela, aliás. Nos entregamos à comida como conforto, trocamos o dia pela noite e vivemos muitos dias como se o tempo tivesse parado. Até nos darmos conta - talves só agora, quando março bateu de novo à nossa porta ou surgiu de novo na folhinha do calendário - de que o tempo não parou. "Ele não vai voltar mais. E meu corpo está aqui, trabalhando com tudo o que estou ingerindo, vivendo passando e pensando", concorda Luci Gonçalves, que mora na Zona Norte no Rio de Janeiro.

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Luci foi uma das embaixadoras da nossa Turnê Sallve no Rio de Janeiro, que aterrissou essa semana no estado, e conversar com ela foi uma troca de experiência e de ideias que só sublinham essa ideia: o tempo não para. "Eu fiz 23 anos, vou fazer 24, nada disso vai acabar agora, então não posso alastrar essa minha jogada. Não são férias. Então acho que remontei uma rotina pra mim nessa loucura. Está sendo bem doido, mas isso é se adaptar", ela conta.

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Luci respeita as restrições da pandemia à risca e tem total noção de sua responsabilidade como influenciadora no Instagram. Em casa a maior parte do tempo, ela ressignificou um velho ditado: "Minha mãe já dizia que cabeça vazia oficina do capeta, mas aqui, na verdade, não foi do capeta, foi de coisa boa mesmo", ela diz. É impossível navegar pelo seu feed no Instagram e não perceber que, em meio ao ano em que o tempo não parou (mas pareceu ter parado), Luci mergulhou de cabeça em si mesma. O resultado a gente tem sorte de acompanhar a cada post: ela raspou a cabeça, descoloriu as sobrancelhas, testou novas maquiagens, mudou o guarda-roupa inteiro e abraçou as mudanças do seu corpo. Mas calma, a gente chega lá.

O mergulho e as descobertas

"Minha cabeça estava vazia, então pensei: vou aproveitar esse momento aqui, que vai ser pesado, e vou tentar direcionar minha força em outras coisas, já que estou com tempo livre, para não surtar", diz Luci, sobre como resolveu abordar esse período de pandemia. Com essa filosofia, ela viu nas circunstâncias o momento ideal de testar coisas novas e se explorar: "Já que não vou sair e não tenho que expor esse rostinho aqui ao julgamento, dá para experimentar outras coisas", conta. "Na internet as pessoas são mais abertas. Na rua você tem que encarar o olhar das pessoas, e às vezes a gente não tem a autoestima pra encarar isso. Daí pensei, vou fazer tudo que der na telha. Pesquisei mil estilos diferentes no Pinterest que sempre me interessaram. Acho que sempre me prendi muito a um estilo em que me encaixaram, sabe? Quando você está ali no seu grupinho, falando de um jeito, se vestindo de um jeito..."

Luci descoloriu as sobrancelhas e adorou o resultado: "Como que eu ia saber que fico bonita com as sobrancelhas descoloridas? Nunca!", ri. Esse período em casa e o sucesso dos experimentos que foi fazendo, sozinha, foram lhe dando cada vez mais fôlego de explorar ainda mais: seja na maquiagem, ou mesmo em seu estilo. "Mesmo não saindo comprei muita roupa. Joguei todas as minhas roupas de ficar em casa fora e pensei: 'vou usar minhas roupas de sair dentro de casa, vou explorar um novo estilo mesmo'", relembra. O resultado? "Finalmente quebrei isso de querer se arrumar para o outro".

Luci vai além: "Uma coisa muito doida que mudou é que eu, que sou 'pirigueti profissional' - adoro um decotão, um shortinho bem curto -, senti que acabava vestindo roupas que nem cabiam em mim, que eram muito apertadas, porque era o que eu tinha, porque eu não tinha explorado outros estilos, e também por causa do olhar do outro. Agora prezo tanto pelo conforto! Me tornei uma pirigueti confortável, agora sinto que todas as minhas roupas cabem em mim. Percebi que a gente se mutila mesmo, sai de casa com aquelas roupas todas apertadas, o corpo todo marcado, o short que deixa tudo assado. Gente, não precisava disso, e foi isso que eu quebrei".

E a cabeça raspada como revolução - de transformações de dentro pra fora e vice-versa

Luci afirma que não havia momento melhor para raspar a cabeça do que esse período de pandemia e confinamento. Parecia até racional: ela está em casa direto, pode acompanhar o crescimento do cabelo, tem seu tempo e seu espaço para se acostumar com seu novo visual... Mas o que pode parecer uma escolha simples de ser feita, para Luci demandou tempo, reflexão e preparo: ela conta que fez terapia para ter certeza de que queria mesmo raspar os cabelos e se preparou financeiramente para dar o passo, caso perdesse alguma parceria de publicidade.

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E como é raspar o cabelo? "É uma coisa muito boa, mexe muita coisa dentro de você. Raspar o cabelo é quebrar muita coisa", Luci responde, imediatamente, sorrindo e ao mesmo tempo tentando buscar palavras que possam definir todo o furacão que parece estar sempre a mil dentro dela, causando constantes revoluções. "Lembro do dia em que raspei a cabeça e fui dar um mergulho na praia à noite. Chorei, chorei e chorei, porque você sente, sabe? Eu não tinha nada me abafando, e senti mesmo que aquele cabelo não pertencia mais a mim".

Raspar a cabeça veio depois da sensação de que seu cabelo já não fazia mais parte de quem Luci era, naquele momento: "Eu não me reconhecia mais nas fotos", ela conta. Outro ponto positivo de raspar a cabeça? Como tem dermatite nervosa, ela agora consegue tratar o couro cabeludo com mais eficácia e facilidade.

"Eu não quero te influenciar a comprar a blusinha, meu propósito não é fazer a pessoa comprar um creme da Sallve: é fazer com que ela enxergue a pele dela, que tem um produto bom e acessível para ela. É sobre grana, sobre representatividade, se olhar no espelho.

Luci Gonçalves

A feminilidade, assunto obrigatório que surge quando a conversa é cabeça raspada, também é levantada pela carioca: "Eu, que sou bissexual, não me sinto mais feminina perto dos homens. Ao mesmo tempo, nunca me senti mais feminina em toda a minha vida. Com os homens, porém, sinto que a percepção que eles têm sobre a minha feminilidade mudou. Sou muito mais tratada como 'e aí, mano?', sabe?" É totalmente diferente o que é ser feminina para eles e para mim", conta.

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Para Luci, raspar a cabeça é aprender a saber lidar com tudo isso e ainda constatar uma nova faceta da realidade que só as mulheres conhecem: "O assédio diminuiu muito na rua quando raspei a cabeça. Mas é só colocar lace - porque eu adoro mudar - e sair na rua que volta tudo. Como o assédio tá ligado a cabelo! Não imaginava que era assim".

Ah, e será que Luci sentiu mesmo o baque financeiro que esperava ao raspar a cabeça? A resposta, conversando com ela e sendo tão fascinada pela mulher que ela é, é óbvia: não. "Me toquei que minha renda principal sempre foi com marcas que nunca tinham a ver com cabelo. Na verdade eu nem estava ganhando dinheiro com cabelo. É tão doida a manipulação... Eu achava que quando tivesse o cabelo bem grandão ia fechar mais trabalho, e não é sobre isso: é sobre a mulher que eu sou, os assuntos que eu abordo. Ainda perco muito dinheiro por ser quem eu sou, acontece, mas prefiro ser eu, sempre".

Ela segue: "Meu cabelo sempre foi crespo, sempre fui uma mulher que falava da favela, para a favela. Sempre fui uma criadora de conteúdo para a classe C e D, sempre fui bissexual e falei sobre isso, e todos esses são assuntos que hoje em dia muitas marcas abraçam. Mas na época em que comecei, em 2016, tudo isso era uma forma das marcas se afastarem, por eu ser polêmica demais. Não havia também esse movimento do cabelo crespo, e sinto que fiz parte desse movimento - por ser uma mulher gorda, ou grande, favelada... "

A coragem de encarar que a gente muda

Em meio a tudo isso, Luci analisa que mais do que a vontade de raspar a cabeça, assimilar que ela (assim como suas vontades) havia mudado, foi algo mais difícil de assimilar: "Às vezes o problema é assumir que a gente mudou", ela diz, acertando no alvo.

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"Esse foi o primeiro baque. Porque para mulheres e pessoas negras, então, que estão sempre querendo provar alguma coisa, tentando sobreviver, é muito importante quando você grita quem você é, quando você se firma e diz 'essa sou eu'. E isso pode acabar fazendo com que você se acomode com alguns papéis e lugares. Você se apega a eles e acaba se podando, diminuindo a vontade de mudar e fazer outras coisas. Raspar o cabelo foi muito sobre entender que tudo é fase - já tive a fase de querer ter o cabelo grande, mas entendi que essa fase já tinha passado. Eu ficava lutando contra aquela vontade - como assim você não quer mais ter o cabelo grande? Mas é tão fácil entender que em seis meses você quer uma coisa, e depois não quer mais..."

As mudanças se estendem ao corpo

Outra experiência de transformação da Luci durante a pandemia foi a revolução de abraçar as mudanças do seu corpo: "Tenho um corpo muito sanfona, e muitos desses processos de emagrecer são processos meus de depressão, é uma luta minha. Eu cresci com as pessoas me elogiando por ter emagrecido, sabendo que era por uma doença", diz Luci. "Sempre sofri gordofobia quando estava gorda", relembra.

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Por muito tempo, Luci se colocou no espaço de "mulher grande", como ela define: "Eu me acomodei nele". Veio a pandemia, ela conta que engordou muito, perdeu todas as suas roupas e viu ali a oportunidade de testar o novo - de novo: "Saí desse lugar de mulher grande e entrei nesse lugar de mulher gorda. E sair desse lugar em que já me sinto tão confortável e aceitar meu corpo como um corpo gordo, que passa por mais gordofobia, que consegue perceber mais violência no dia a dia, está sendo muito doido. Aceitar que meu corpo é gordo é um processo que estou vivendo esse mês, e percebo que ainda tento entrar nesse espaço de um corpo menor, do 'corpo grande'. E aí vou diminuindo a barriga, como menos, porque preciso manter essa postura que peguei pra mim, em que as pessoas me reconhecem".

Migrar para um corpo gordo está sendo um processo absurdo - entender todas as opressões que isso significa pra mim, as violências que tenho sofrido nos espaços... É bem complicado, mas é só um processo, uma fase, de entender que meu corpo muda.

Luci Gonçalves

Com Luci, porém, nada fica apenas na superfície, você já deve ter percebido. Ela gosta de mergulhos profundos, não importa o assunto. Ao falar sobre o corpo gordo, seu mergulho é em uma conversa delicada e que ela mesma afirma, "as pessoas ainda não estão prontas para ouvir", que é o dinheiro e a fome. "Pela primeira vez na vida tenho dinheiro pra me alimentar da forma que eu quiser. Eu como muito bem, adoro cozinhar, estudo gastronomia. Eu estava magra antes porque estava passando fome. É difícil as pessoas entenderem que meu corpo nunca foi aquele, que por anos eu não tinha era grana mesmo para comer, mas a galera não está preparada pra falar sobre isso, sobre passar fome", crava. "Graças a Deus foram poucos momentos da minha vida em que passei por isso. Mas as pessoas não estão prontas pra conversar sobre isso, especialmente o povo da internet - afinal, a internet mesmo é privilégio no Brasil".

Luci afirma que seu corpo está, para ela, ligado a sua condição financeira e à dignidade: "E também à ideia de que corpo está bem, de que estou me alimentando bem, de que meus exames estão bons, é a minha dignidade - coisa que não tive. Não é só o rolê de me olhar e só me enxergar gorda, é entender por que meu corpo hoje é esse porque eu como, e vejo meu corpo com saúde".

E no meio disso tudo, descobrir a própria pele

Não é exagero dizer que raspar a cabeça foi uma ebulição absoluta na vida de Luci: foi depois de se ver com os cabelos raspados que ela finalmente enxergou sua pele. "Eu desenvolvi uma rotina de cuidado com a pele muito grande depois que raspei a cabeça. Eu vejo tanto meu rosto, não tem mais nada o escondendo, que sou obrigada a me olhar", diz. "Nunca quis cuidar tanto da minha pele. Agora eu passo as coisas na minha pele e sinto o efeito de verdade, porque não tem um monte de creme pingando e interferindo", continua Luci, dizendo que se enxergar tanto lhe fez querer tirar até o piercing do nariz, "para me enxergar sem nada no rosto mesmo".

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Luci tem a pele normal, e teve acne durante a adolescência, até entrar no anticoncepcional, dos 16 aos 19 anos. Por anos, Luci confessa, ela ignorou completamente sua pele: "Eu não usava nada, não lavava o rosto, porque não tinha grana, não tinha acesso. E aí passei esse tempo inteiro ignorando a pele, sem passar um hidratante, sem entender que a pele é um orgão que precisa ser cuidado. Ela era completamente ignorada. E quando se fala sobre pele para mulheres negras, ignorar a sua pele não é só ignorar o skincare. Você ignora muita coisa - eu não me olhava no espelho, por anos. Hoje descobri pintinhas, traços, descobri minha pele".

A correria do dia a dia - ônibus, escola, trabalho, criação de conteúdo para seu canal do YouTube - também dificultou a existência desse espaço para cuidar da pele: "Como que você pede pra uma mulher que não tem representatividade, que não segue ninguém que tem a pele como a dela, o estilo de vida dela, para ela se inspirar? Uma mulher que não tem grana para testar, olhar para a própria pele? Não tinha como. Foram anos bem obscuros".

Por já ter habitado esse lugar, Luci hoje tem plena consciência da sua responsabilidade como criadora de conteúdo e sua importância como criadora desse espaço de acolhimento, de representatividade: "A maioria das mulheres que me seguem têm dupla função, e se eu puder fazer com que elas se lembrem de se olhar um pouquinho no espelho, se eu puder mostrar que tem um produto que vai ser bom pra elas, que existem mulheres que nem a gente, eu cumpri meu papel", conta. "Eu fui para esse lado, e ele requer mais tempo para criar".

"Eu perco muito mais do que eu ganho. Não ligo muito para números, e entendi que número pra mim não é importante. Ir para esse lado mais devagar e humano, de troca real, requer não ligar pra essas coisas. Para mim eu estou ganhando à beça, porque estou construindo muito mais, mesmo que para o sistema esteja perdendo mais do que estou ganhando."

Luci Gonçalves

Outra coisa que fez com que Luci começasse a enxergar a própria pele foi começar a fazer tatuagens: "Isso foi quebrando várias coisas, porque tem que hidratar a pele depois da tatuagem", ela conta, completando que, ao mesmo tempo, foi caminhando pelo lado mais orgânico e natural das redes sociais. "As marcas começaram a aparecer, comecei a ter uma graninha pra testar produtos... Foi aos pouquinhos, foi criando uma relação de verdade".

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A conversa termina quase como começou: no cabelo. Luci afirma que para uma mulher negra, o foco é sempre ele: "A gente machucou muito o couro cabeludo, a gente quebrou muito o nosso cabelo com todo o racismo que a gente viveu, então meu foco sempre foi o cabelo, e a pele ficava em segundo lugar. Depois que raspei a cabeça, não tinha mais cabelo para cuidar, não tinha mais aquela importância toda que eu dava para ele. Quando você se olha no espelho com o cabelo raspado e vê que não tem mais nada pra roubar a atenção do seu rosto, quando você se toca que é só você e o seu rosto, você começa a ver coisas no rosto que não via antes".

Foi assim com ela: "Eu conheci até minha orelha", ri, falando que com tudo isso brotou a vontade de cuidar profundamente da pele. "Comecei a estudar ervaria, aromaterapia, medicinas orientais, doenças psicosomáticas. Daí comecei a entender, quando pipocava uma espinha, que podia ser problema hormonal, que essa espinha aqui pode ser estresse. Testo um creme, e se dá certo coloco na minha rotina", conta. "Sei que a pele pode ter reagido porque comi muita fritura, porque teve muito refrigerante naquela semana... Eu comecei a me conectar muito mais com a minha menstruação. Eu consigo escutar o meu corpo. A minha pele me mostra o que está acontecendo dentro do meu corpo, e que eu não posso ver. Minha pele é um fator de manutenção do meu corpo e da minha saúde, ela faz parte de um corpo que eu quero que esteja bem".

A mensagem da conversa: o tempo é, definitivamente, o que a gente faz dele - e pode causar revoluções se a gente se abrir pra ele.

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