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#vivasuapele: Kara Catharina e a revolução da transição

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É engraçado como todos as conversas da nossa série #vivasuapele começam da mesma forma: parece que absolutamente todo mundo teve, pelo menos em algum momento, um relacionamento difícil com a própria pele. O mais curioso é pensar que todos nós passamos pela mesma coisa e ao mesmo tempo nos sentimos, inevitavelmente, sozinhos nessa jornada. Talvez seja isso o mais incrível desse espaço que temos aqui: essa troca que se transforma em uma grande rede que comprova o quanto todos nós vivemos tanto em nossa própria pele. E o mais lindo? Todos nós aprendemos tanto com ela.

Com Kara Catharina não foi diferente: "Meu relacionamento com a minha pele, um de amor e ódio, começou na adolescência", conta ela a atriz e drag queen de 27 anos, que mora em Campinas. "Sempre tive muita acne, que comecei a tratar com uns dez anos de idade, e isso sempre foi uma questão muito central, falando da minha autoimagem na adolescência. Nessa batalha com a acne, cheguei a tomar Roacutan duas vezes", ela começa. A primeira vez que Kara tomou Roacutan foi aos 13 anos. Com o fim deste tratamento, a acne voltou, e ela retomou a medicação aos 18 anos. "Na segunda vez foi mais frustrante porque já não tinha mais aquela esperança de que fosse melhorar. Mas como eu era mais velha já não era algo de vida ou morte".

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Um ponto de grande mudança na jornada da pele da Kara aconteceu com o amadurecimento. Foi o passar do tempo e toda a experiência que ele traz que ensinou Kara a enxergar sua pele como ela é, e a afinar as expectativas que ela tem. "Acne mexe muito com a gente, com a nossa autoestima, nossa autoimagem... Ainda mais na adolescência, quando já estamos questionando tanta coisa. Hoje penso que me parece meio bobo, mas sei que era uma coisa que pesava na época. Eu deixava de sair se a acne tivesse mais atacada, ou faltava a escola, e tentava todas as receitas caseiras, por mais mirabolantes que fossem. Era um constrangimento mesmo, e um muito bobo, porque a acne é uma resposta do corpo. Hoje olho pra trás e não digo que houve um exagero, mas houve uma falta de compreensão", ela reflete, completando: "Mas nao sei se é possível ter essa compreensão com 16 anos".

Hoje, aos 27 anos, Kara conta que ainda sente algum constrangimento quando sua acne aparece mais forte: "Mas sei que é uma besteira. Embora ainda mexa com a minha autoestima, hoje tenho mais recursos, me conheço mais e meu corpo está em um lugar fisiológico que torna mais fácil para mim lidar com isso e controlar minha acne".

A transição de gênero sentida na pele

Outro ponto de profunda mudança (em todos os sentidos) na vida de Kara foi sua transição de gênero. O tratamento hormonal pelo qual ela passa, claro, se reflete na sua pele: "Os hormônios mudaram completamente a forma como a minha pele se comporta e a forma como ela reage a alguns produtos que antes funcionavam perfeitamente". Foi aí que, além de tantas outras descobertas, Kara teve que redescobrir sua pele, que agora pede um tratamento mais maleável, que muda ao longo do mês: "Antes minha pele tinha um ciclo muito estável, mas agora tenho também o ciclo do hormônio, e a minha pele varia durante o mês. Além do bloqueador de testosterona, tomo dois bloqueadores de hormônio, um diário e um mensal, que é injetável e tem uma dose de hormônio muito alta". Kara conta que, após o bloqueador de hormônio mensal, sua pele fica "maravilhosa" - da textura à acne. "Mas conforme vai passando o mês, ela vai tendo algumas alterações". Os produtos não mudam ao longo do mês, ela explica, e sim suas formas de uso.

Esse processo de transição de gênero, Kara conta, alavancou seu processo de aceitação da própria pele: "Com certeza", ela afirma, bem firme, ao ser perguntada sobre a relação entre os dois. "Cada pessoa encara seu processo de transição de uma forma diferente", ela conta, mas prefere abrir ainda mais a conversa para transformações pelas quais todo mundo pode passar, e que vão nos moldando em novas pessoas com o passar do tempo: "Tenho amigas que falam de uma mudança muito radical de um momento para outro, como se fosse uma despedida da pessoa que você era para descobrir uma pessoa nova. Mas acho que é assim para todo mundo, independente da transição de gênero ou não. Por que acho que a gente está sempre se redescobrindo".

A conversa, porém, volta à transição: "No meu caso, tem uma relação de eu me entender e me reconhecer dentro dessa pele. Hoje tenho um pouco mais de tranquilidade com as falhas e marcas que acumulei, e me entender melhor dentro dessa pele que visto me ajudou a ter uma relação um pouco melhor com esse cartão de visitas. Ao mesmo tempo em que a transição de gênero traz algumas disforias e questões, no meu caso, essa relação com a minha pele ficou mais tranquila. Não que eu esteja 100% satisfeita, mas estou ficando mais à vontade com a ideia de que está tudo bem ter uma coisinha aqui, outra ali, e não ter aquela pele de comercial".

Com uma relação de menos pressão, veio o desejo de uma rotina de skincare mais enxuta. Kara brinca que tinha "53 mil produtos", mas que agora, por conta não só da transição mas também da idade, sua pele vem lhe pedindo outras coisas: ela deixou de fumar, toma mais cuidado com a alimentação e mantém uma rotina simples, de limpeza, hidratação e protetor solar, além de um ácido para quando a pele precisa: "Um produto bom usado da forma correta faz o que 150 produtos usados do jeito errado não conseguem fazer", ela ensina. "Eu não dava tempo nem de deixar as coisas funcionarem no meu rosto, não sabia mais o que cada produto tava fazendo, mas agora escolho de forma mais criteriosa, e aprendi que minha pele reage também a fatores externos, como o clima".

"A gente tem que normalizar uma coisa que deveria ser mais normal"

Basta uma olhada rápida no Instagram de Kara, aliás, para ver que a atriz e drag queen opta por compartilhar cada passo de seu tratamento hormonal com seus seguidores, que comemoram com emojis de coração e foguinho. Para ela, essa decisão tem a ver com normalizar o que deveria ser algo normal mesmo, e dá um exemplo certeiro: a dificuldade que ela mesma teve de encontrar um endocrinologista que a atendesse: "Passei por todo o caderninho perguntando 'Você atende pessoas trans?', 'Você faz terapia hormonal?', e as pessoas simplesmente não trabalham com isso.

Kara acredita que a limitação, no caso de muitos profissionais, não seja nem embasada em preconceito, mas em falta de informação: "Parece uma coisa tão distante e menor", diz. Kara, felizmente, encontrou um profissional, mas ressalva que só conseguiu por indicação de um amigo. Ela aproveita para falar sobre a dificuldade que é, para todas as pessoas trans, iniciar esse processo: "Eu comecei a me hormonizar com informações de facebook, que é como a maioria das pessoas faz", mela relembra. "O acesso no SUS existe, mas não em todas as cidades. Campinas tem um ambulatório trans no SUS, que é referência nacional, mas tem uma fila de espera muito grande, e tem coisas pra gente que é pra ontem".

A importância de se ter um acompanhamento profissional durante a hormonização é, claro, fundamental: "São varios remédios que dá pra tomar. No meu caso são alguns tipos de bloqueador de testosterona diferentes, alguns de repositores hormonais como Roacutan, Primogyna, Cicloprymogina... E são efeitos diferentes no corpo, na redistribuição de gordura, no humor... Então até você encontrar essa combinação é muito dificil, ainda mais sem acompanhamento. Meu lugar é de desmistificar isso, seja para outras pessoas trans ou não".

Ao falar sobre seu tratamento hormonal, Kara faz questão de normalizá-lo ao máximo: "Pessoas têm seus hábitos e rotinas para se enxergarem nelas mesmas, eu tenho esses", ela diz. "Além do que, acho que é algo que diz muito sobre mim e conta muito sobre quem eu sou, como me relaciono com o mundo. Gosto também de entender algum viés estético que isso possa ter - essa relação aberta com o corpo ao ponto de poder transformá-lo, que é algo que só as pessoas trans passam. A gente teve o agridoce privilégio de um dia sonhar com quem a gente queria ser e transformar esse sonho em realidade. Gosto de brincar que sou um sonho que anda. Eu passei por uma segunda puberdade aos 22 anos, com uma mentalidade que nõa tinha aos 12 anos, então poder me entender dentro desse corpo é algo do qual sinto muito orgulho. Falar abertamente sobre os hormônios é assumir uma autonomia sobre quem eu sou: eu não sou refém desses hormônios, eles que servem ao meu favor. Se eu quiser parar de usar amanha eu paro, mas hoje tenho tanta autonomia sobre meu corpo que eu posso decidir como eu quero que ele se mostre".

Kara termina a conversa falando sobre transição e toda a autonomia que ela oferece: "Eu tenho minhas questões como qualquer outra pessoa, independente da transição. Mesmo que você nunca vá sair do armário, fazer um procedimento estético ou tomar hormônio, necessariamente você vai ter que passar por um momento de se questionar e questionar o que estava colocado, e pensar numa outra possibilidade. Para mim é muito forte essa questão da autonomia - reividincar meu corpo, minha identidade, minha pele, minha autoimagem, e entender que eu seria a única pessoa que poderia ter controle sobre isso. Apesar de tudo isso me colocar numa posição de fragilidade socialmente, ao mesmo tempo é muito empoderador. É muito poderoso me olhar e entender que a pessoa que eu sou hoje fui eu que construí, e que ainda sigo construindo, e que ainda tem muito mais construção pela frente - ou não. Esse 'ou não' também tem um lugar de poder. Porque eu também não sou refém de sempre estar me construindo. Posso também só seguir em frente como posso tomar as rédeas do que vai acontecer ou não no meu corpo".

Parece incrível, Kara <3

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