Você deve ter lido esta semana que o mundo da moda perdeu um de seus fotógrafos mais icônicos. O alemão Peter Lindbergh, responsável por catapultar o fenômeno das supermodels à estratosfera, morreu aos 74 anos.
O buraco deixado por sua perda, porém, vai muito além da moda - ele invade, entre tantos outros campos, a beleza. Peter Lindbergh foi, literalmente, um homem que amava as mulheres, e que as colocava no centro de tudo o que fazia (embora tenha fotografado muitos homens também). Mas é esse relacionamento de absoluto respeito e verdadeira devoção ao feminino - que ele enxergava em sua totalidade - que alinhava toda a sua carreira.
"Você não vê a beleza e a poesia de não ser perfeito?"
- Peter Lindbergh
O Peter tinha como regra primordial jamais usar Photoshop para retocar suas imagens. Em seu calendário Pirelli 2017, ele usou a folhinha mais famosa do mundo como um protesto contra justamente esta cultura.
"As empresas de cosméticos fizeram uma lavagem cerebral em todo mundo. Eu não retoco nada. 'Ah, mas ela está com a aparência cansada!' E daí se parece cansada? Cansada e linda!', ele disse, na época de suas entrevistas de divulgação do calendário.
Nele, atrizes famosas como Nicole Kidman e Kate Winslet apareciam belas como elas são, sem ferramentas ou cortinas de fumaça para se encaixarem em teimosos padrões de beleza, que a esta altura do campeonato já se tornaram cafonas (se é que não foram sempre).
"Neste momento em que mulheres são representadas na mídia e em todos os lugares como as embaixatrizes da perfeição e da juventude, achei importante lembrar a todos de que há uma beleza diferente, mais real, verdadeira, e muito distante desta manipulada por outros interesses além do comercial. Uma beleza que fala de individualidade, coragem para ser você mesma e sua própria sensibilidade", ele disse, sobre este trabalho e o que ele defendia.
"Quase tudo foi retocado, e essa perfeição está aterrorizando o mundo. Este desespero pela perfeição é o que há de mais desestabilizador".
- Peter Lindbergh
O debate em torno do uso do Photoshop, porém, permeava sua carreira desde sempre. Peter recusava-se a este tipo de retoques e obrigava as revistas e marcas com as quais trabalhava a assinarem contratos concordando em não mexer nas imagens.
O resultado eram imagens que perfuravam nossos olhos e infiltravam-se em nossas almas e que, invariavelmente, fazem parte do imaginário coletivo. Eram imagens feitas para revistas de moda, mas eram as mulheres que apareciam em primeiro plano. A roupa era apenas um mero detalhe - como naquela foto de uma turma de modelos rindo na praia, usando apenas camisas brancas. Você lembra da foto pelo sorriso das mulheres, não pelo que elas estavam vestindo.
"Mulheres são muito mais abertas e corajosas. Elas tem mais coragem e assumem muito mais riscos do que os homens. Vejo as mulheres como elas realmente são. Talvez por isso elas podem se libertar de si mesmas perante minhas lentes".
- Peter Lindbergh
Hoje em dia existe um debate muito grande em torno do efeito das revistas de moda na autoestima de uma geração inteira. Elas seriam o estopim para distúrbios alimentares e problemas mentais. Como alguém que cresceu com as portas dos armários cobertas de fotos de supermodels clicadas por Lindbergh, nunca entendi muito a ligação tão direta assim entre uma e outra - talvez por nunca ter me sentido oprimida por essas fotos. Aliás, me sentia muito mais oprimida pelas garotas da minha escola do que por supermodels tão lindas na praia ou numa rua do Brooklyn, lindas de morrer.
E é justamente aí que mora o grande diferencial das imagens de Peter Lindbergh! "Elas tinham o poder de fazer você, uma mulher, se sentir melhor sobre si mesma, não horrorosa em comparação conforme você olhava para elas", escreveu Sarah Mower, crítica de moda, em seu Instagram, em uma homenagem ao fotógrafo.
É exatamente isso. A beleza em seu estado mais puro inspira, eleva, faz com que a gente enxergue poder e beleza em nós mesmas.
"Alguém com motivações comerciais pode querer te fazer acreditar que perfeição é beleza. Mas perfeição é um insulto".
- Peter Lindbergh
No livro que publicou em 2015, "Images of Women II", Lindbergh escreveu: "Se fotógrafos são responsáveis por criar ou refletir a imagem das mulheres na sociedade, então, devo dizer, só há um caminho para o futuro, e ele é definir as mulheres como fortes e independentes. Esta deveria ser a responsabilidade dos fotógrafos hoje em dia: liberar as mulheres e, finalmente todo mundo, do terror da juventude e da perfeição".
Não é tão forte e tão relevante para os nossos dias? Para o que conversamos tanto?
"Minha sensação é de que, há anos, tanto retoque começou a exercer um poder grande demais em como as mulheres são visualmente definidas hoje em dia. Retoques sem a menor justificativa não deveriam ser a ferramenta escolhida para representar a mulher neste começo de século".
- Peter Lindbergh
Essa conversa toda me lembrou uma outra fotografia - não de Peter Lindbergh, mas do holandês Anton Corbjin. A foto em questão é do Michael Stipe, vocalista do R.E.M., em um mergulho no mar - ela faz parte do encarte de "Automatic for The People", álbum da banda de 1992.
Em um documentário sobre o fotógrafo/diretor de cinema e videoclipes, Stipe comenta a imagem, num momento que ficou marcado na minha cabeça para sempre: ele contava que tinha o maior complexo de suas cicatrizes de acne (o Michael teve acne severa na adolescência e ficou com o rosto todo marcado). Mas que quando viu aquela foto pela primeira vez (ele dizia que era sua foto favorita), pela primeira vez ele curtiu suas cicatrizes, que apareciam bem evidentes. "Anton Corbjin é bom a esse nível. Ele fez com que até minhas cicatrizes de acne ficassem bonitas", disse (em linhas tortas, pois não me lembro de suas palavras exatas).
Uma imagem poderosa, que vira arte, é isso: ela faz com que você se veja por inteiro e, com sorte, inspire tantos outros a se verem por inteiro também.
Há tantos exemplos incríveis de "imperfeições" que viram a maior qualidade com uma boa foto. Há tantos exemplos também, como mostrou Peter Lindbergh, de imagens que trazem a beleza mais incontestável para perto de você, pelo simples fato de celebrar a humanidade e a vida por trás delas.
Peter Lindbergh morreu essa semana. Mas tomara que seu trabalho continue sendo passado de geração para geração, e que todos, entendam a eletricidade de tudo o que ele passava em seus cliques, questionando a perfeição e mostrando que a beleza absoluta não precisa ser perfeita.