Tá, tá, tá, eu roubei o título de um álbum do Jane's Addiction, mas com a licença do Perry Farrell, eu hoje vou falar de... bem, rituais. E sobre morar longe de todo mundo que, como eu (ou quase como eu) gosta de seguí-los à risca.
Quando você mora no Brasil, é algo bem intrínseco: na noite de Ano Novo você usa branco. Você não come frango nem que sua vida dependa disso. Você come 12 uvas brancas e guarda as sementes na carteira. Ah, e não pode faltar romã na mesa. Uma passada no mar para oferecer flores e barquinhos a Iemanjá é bem-vinda. É tudo muito automático, e nada disso é visto como superstição. É o dia em que todos nós misturamos todas as religiões, crenças e rituais sem qualquer problema. Vale tudo, corre no sangue mesmo.
Mas minha lista de rituais vai mais longe: não como carne vermelha, preciso virar o ano com todas as luzes da casa acesa e tudo o que visto precisa ser novo (sapatos especialmente, novos caminhos!), preciso rezar na virada. Vai longe, gente, sério.
Por tudo isso, o maior choque cultural que sinto morando na Europa (mais precisamente em Luxemburgo) acontece exatamente todo dia 31/12 que passo aqui. A palavra pode ser francesa - réveillon - mas a festa, queridos, a festa é brasileira. Foi a gente que inventou. É a gente que sabe fazer. "Luxemburgo nem mar tem, gente, como faz? Isso aqui não foi feito pra virada", sempre digo, como boa carioca que viveu a vida toda embalada pelo cheiro da maresia.
Sabe o que é o choque de sair para as compras de Ano Novo e dar de cara com vitrines e mais vitrines repletas de roupas pretas?
Eu: Oi, tudo bem, você tem algum vestido branco?
A vendedora: Não, não, estamos com a coleção de inverno.
Eu:
Depois do quinto ano consecutivo desesperada atrás de uma mísera peça de roupa branca para a virada aprendi a comprar no verão e guardar até dezembro. Mas a vontade de falar "Esconjuro"! a cada vez que alguém me sugere um vestido preto para a virada, essa não passa.
Daí eu compro a roupa branca - invariavelmente morro de frio na noite de Ano Novo, mas diz que o champagne esquenta -, chego na festa de réveillon e não adianta: todo mundo veste preto. Tem um peru enorme no meio da mesa. A casa está todinha a meia luz. Aprendi também: levo as uvas na bolsa, junto com a romã, e todo mundo acaba se divertindo conforme vou ensinando nossas tradições, sentindo-me como uma espécie de Gandalf (o Branco, claro) das simpatias. Como se eu estivesse chegando ali espalhando a palavra dos brasileiros supersticiosos (e ajuizados, hein?), semeando arroz de lentilha aos europeus como se isso fosse salvar qualquer 2020 que possa surgir pela frente.
Ano passado passei a virada no Brasil. Todos vestíamos branco. Todos comemos peixe, arroz de lentilha, guardamos cuidadosamente nossas sementes nas nossas carteiras, seguimos os rituais e depois vimos os fogos de Copacabana pela janela. Eram lindos. Sabíamos os orixás que iriam reger o ano, sabíamos o que astrologia falava (não era bom, risos). Naturalmente.
Não sei apontar diretamente quando comecei a incorporar cada uma dessas crenças, mas a verdade é que foi preciso eu me mudar para bem longe do Brasil para que todas elas se revelassem uma enorme colcha de retalhos de tradições de família e cultura que falam muito mais sobre de onde venho (e de quem eu venho) do que qualquer outra tradição que aprendi quando era criança.
O marido é zero supersticioso. Nos primeiros anos juntos, ele chegava a brincar: "Que doidera isso das luzes acesas na virada, Mariana"! Faz alguns anos, porém, que ele mesmo me lembra perto da meia-noite, se estamos em casa, "Mari, as luzes estão todas acesas"? ou, se vamos sair, "Mari, acende as luzes, que estamos saindo". E é aí que eu vejo que essa colcha de retalhos já virou mesmo parte de mim, mesmo para quem não segue nada disso. E sigo, Gandalf o Branco, nessa Terra Média dos réveillons dos descrentes das tantas simpatias brasileiras. Pode deixar, gente, eu sigo semeando o arroz de lentilha. E feliz Ano Novo!